quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Fábricas Metalúrgicas Alba: "Esta empresa foi um estado-providência" (Jornal Público)



Desenhou e produziu os bancos de jardim que decoram o país. Fabricou postes de iluminação em ferro fundido, ferros de engomar, louça de alumínio, caixas de correio. Construiu hospitais, cineteatros, um bairro social. Abriu refeitórios para dar sopa aos pobres. Criou um clube de futebol e trouxe ao mundo um carro de competição genuinamente português. Alba, a metalúrgica de Albergaria-a-Velha, transformou uma região, “albalizou” o império. A fábrica fechou, mas a marca resiste e já tem um prémio internacional de design.

Quando Augusto Martins Pereira chegava à empresa e comentava logo pela manhã que tinha passado a noite a puxar pela cabeça, os funcionários mais próximos sabiam que um novo produto estava a caminho, que não tardaria a surgir no papel e a ganhar forma. Havia muito respeito pelo patrão que tinha mão para o desenho, olho para o negócio, cabeça para surpreender o mercado, pernas para tirar o tapete à concorrência e um coração generoso que entendia e tentava resolver as dificuldades dos seus trabalhadores.(...)


Augusto Martins Pereira, o fundador

Martins Pereira, fundador da metalúrgica Alba, instalada em Albergaria-a-Velha em 1921, colocou a empresa nas páginas da história industrial portuguesa com uma visão inovadora para a época. A sua curta passagem por Boston e o curso de fundição que aí frequentou tiveram repercussões no meio empresarial português. O empresário não facilitava na hora de defender as suas ideias e lançava mãos à obra sempre que achava que era o momento certo para anunciar o que a sua fundição andava a produzir.

Em Janeiro de 1929, Martins Pereira escolhia o Grémio Recreativo Albergariense, frequentado por muitas famílias da região, para partilhar uma das suas últimas invenções. A sua “cozinha moderna” foi um êxito. Um fogão em ferro fundido de três bicos, portátil, não muito pesado, que com a chama de um simples fogareiro de pressão a petróleo permitia confeccionar três pratos em simultâneo em apenas meia hora. Pouco tempo e pouco consumo para aquela época. O seu inovador sistema de cozinha valeu-lhe um contrato de exportação para os Estados Unidos.


Nessa altura, a Alba já fabricava esmagadores para uvas, autoclismos, prensas completas para bagaço e acabava de montar uma nova secção de niquelagem para o fabrico de ferros de engomar aquecidos por uma pequena lâmpada de petróleo. Mais uma revolução na colecção de peças domésticas e que iria entrar por muitos lares portugueses.

O empresário, que foi agraciado com a comenda de Mérito Industrial e a quem Salazar tirava o chapéu pela pujança económica — chegando inclusive a dar instruções à sua equipa ministerial para que apoiasse o comendador no que fosse necessário —, não era apenas um homem de negócios. Visionário nos produtos que colocava no mercado, estava atento ao que se passava à sua volta numa época em que não havia pão em muitas mesas. (...)


O fundador da Alba sabia que tinha de inovar para conquistar o seu espaço, mesmo liderando uma das mais completas fundições de ferro cinzento do país. Antes de chegar a Albergaria, as suas mãos já tinham passado por várias fundições. Conhecia os seus segredos. Aos dez anos, estava em Lisboa com o pai na Companhia das Águas de Lisboa, como ajudante na fundição onde o seu tio era mestre. Passou por várias fundições de Lisboa e da Covilhã, trabalhou nas minas do Braçal e de S. Brás de Alportel.

Viajou para Boston. Dois anos intensos nos Estados Unidos. Tinha então 20 anos e trabalhava em fundições de dia e tirava um curso da arte à noite. Aprendeu muito nesse tempo, adquiriu o gosto pela simetria que transparece nos desenhos feitos a lápis ou nos portões de ferro que protegem a sua casa moderna para os anos 20 do século passado, com grande piscina, extenso jardim, que mandou construir perto da Alba.


No regresso dos Estados Unidos monta uma fundição de sinos nos Açores, negócio que acabaria por vender alguns anos mais tarde. Faz novamente as malas e regressa às origens. Aos 36 anos, está em Albergaria, onde cria a Fundição Lisbonense (em 1921), alterando pouco depois o nome para Fundição Albergariense. Em 1925, envolve-se na criação da metalúrgica Oliva em São João da Madeira — outra das fundições mais importantes do país. Pedem-lhe para ficar na sociedade com exclusividade de 15 anos, mas não aceita.

Em 1929, nascia a marca Alba, um ano depois de se ter conseguido estabelecer como comerciante em nome individual. A fundição Alba estava pronta para vingar no mercado com um logótipo arredondado que terá saído das mãos do próprio empresário.


José António Laranjeira foi responsável pela fundição

Em 1957, José António Laranjeira tinha 26 anos, estudava Engenharia Mecânica no Instituto Técnico de Lisboa e chegava à Alba como estagiário. Tinha família em Albergaria e parecia-lhe que aquela empresa poderia ser o local indicado para testar a teoria que ia absorvendo na universidade. Não se enganou e, de repente, os conceitos de eficiência e produtividade fizeram todo o sentido. Voltaria à Alba depois do curso concluído e seria, durante 12 anos, o responsável pela fundição da empresa. O empresário Martins Pereira mostrou-lhe que era preciso acompanhar todo o processo de execução de um produto, desde a ordem que saía do gabinete à entrada para a máquina.

O jovem Laranjeira ficava fascinado com a constante procura de soluções. E reparava com admiração e orgulho no trabalho social promovido pelo patrão. “Matou a fome a muita gente e proibiu a mendicidade quando foi presidente da câmara e como provedor da Misericórdia”, recorda à Revista 2.

As tabuletas com os avisos que proibiam andar de mão estendida a pedir esmolas eram feitas na fundição. “Avançava com a obra social sem garantias nenhumas de apoio oficial”, adianta. As condições dadas aos trabalhadores também lhe ficaram na memória: bom refeitório, balneário com cacifos individuais, um centro cultural e recreativo, uma banda de música, um rancho folclórico, livros para os filhos dos operários, um clube de futebol, o jornal Beira Vouga.


O agora octogenário não esquece muita coisa que se passou naquela fábrica. “A Alba distinguia-se porque tinha uma concepção de ferramentas fora de série. No meu tempo usou, e terá sido a primeira em Portugal a fazê-lo, a fundição em carapaça”, recorda Laranjeira. Uma técnica avançada para a época que recorria à areia com resina, matéria-prima mais cara do que a habitual areia verde que recorrentemente era utilizada e que permitia descartar o uso das caixas de moldes e assim acelerar a produção com menos mão-de-obra.

Foi também a primeira a produzir carcaças de alumínio para motores eléctricos pelo processo de vazamento em coquilha por gravidade. A inovação, a capacidade de resposta e a qualidade da “pele” das peças de ferro fundido abriram-lhe muitas portas e a Alba passou a ser procurada por várias indústrias — papeleiras, empresas de transportes ferroviários, construção e reparação naval, motores eléctricos e motores para motociclos.


“O senhor comendador tinha uma particularidade: gostava de pensar.” Laranjeira guarda um documento escrito pelo antigo patrão com recomendações para determinados trabalhos. Martins Pereira avisava pelo próprio punho: “Recomendamos por isso a todos os nossos operários que aproveitem todo o tempo, sem fazerem esforço excessivo que lhes prejudique a saúde, e que evitem passos e operações inúteis, procurando por todos os meios simplificar a maneira de trabalhar, para que todo o aproveitamento seja maior e melhor e com o qual todos vão lucrar.”

Aquelas palavras ficaram guardadas na memória e o engenheiro Laranjeira abre com elas um texto que escreveu sobre o fundador da Alba para a Revista da Fundição da Associação Portuguesa de Fundição, no terceiro trimestre de 1997. “O espírito deste homem era impressionante. Tinha ideias, escrevia, reflectia, não guardava as coisas para ele.” E todos aprendiam. Preocupava-se com a formação dos operários, ensinava a ler desenhos, pagava as despesas dos cursos industriais que os funcionários frequentavam.

A empresa prosperava, as encomendas não paravam de chegar, os bancos de jardim, que começaram a ser fabricados em 1943, eram requisitados por praticamente todas as autarquias do país, a louça de alumínio era um sucesso, as colunas de iluminação andavam a ser cobiçadas por muitos centros históricos.


Artur Dias Moreira dava vida aos moldes

Trabalho não faltava e o trabalho da fundição era duro. Artur Dias Moreira tem 75 anos e tem-nos marcado nas mãos que pareciam maiores do que o corpo quando era preciso dar vida aos moldes. Aos 14 anos, trabalhava na Alba, ajudava no que fosse preciso. Foi fundidor, chegou a encarregado de obra grande.

Era o trabalhador número 528. Conhecia todos os cantos da fábrica, acompanhava a transformação da areia do mar que era enxuta num queimador, subia e descia por um depósito, entrava numa máquina, passava por um processo de mistura, saía para a moldação, e em 15 minutos era cimento. Artur sabia que ali se faziam produtos importantes. “Foi uma vida, gostei muito de trabalhar na Alba. Era a melhor fundição do país nos anos 40 e 50”, afirma.

Não esquece o dia em que teve de marcar passo na tropa frente a um hotel da Figueira da Foz. “Fiquei numa alegria quando olhei e vi que o meu patrão estava lá”, conta emocionado. “Era um homem com todo o respeito, mas era preciso cuidado com a brincadeira. Passava sempre pela fundição para dar uma vista de olhos.” Tem saudades desse tempo e evita passar à porta da Alba. “Podia estar a dar o pão a ganhar a muitos operários.” (...)


Orlando Silva Marques, contabilista

Orlando Silva Marques conhece o Cineteatro Alba de olhos fechados. Era contabilista na Alba e para ganhar mais uns trocos foi trabalhar para a bilheteira em 1962. Não era muito difícil a sala esgotar. Orlando lembra-se dos preços daquele tempo: “Onze escudos para o balcão lá em cima, cinco escudos para a plateia à frente e oito escudos e 50 centavos para a plateia de trás.” Às vezes, batiam-lhe à porta de casa para assegurar entradas antes que voassem, como foi o caso de Um Zero à Esquerda, de Laura Alves.

Orlando entrou na Alba com um curso técnico comercial para se candidatar à vaga aberta na contabilidade industrial. Tinha 23 anos e ali ficou 42. “Os tempos eram melhores, trabalhava-se bem.” Os tempos eram ainda os das máquinas de escrever e de muitos cálculos de puxar pela cabeça. Partilhava o escritório com mais 20 colegas. A fábrica tinha muitas encomendas e isso reflectia-se na contabilidade. “Era a empresa de maior importância na zona.” (...)


Henriqueta Pires, a menina dos telefones

Henriqueta Pires tinha 17 anos quando entrou na Alba. Estava muito nervosa, sabia que tinha de passar pela aprovação do comendador. “Estava sentadinha a um canto para ser apresentada ao senhor Martins Pereira. Ele chegou, levantei-me e ele perguntou: ‘Esta é que é a menina do telefone?’” Ficou na metalúrgica até fazer 60 anos de vida, hoje tem 83 e mora ainda numa das 12 casas que o fundador mandou construir para os quadros da empresa — e que mais tarde seriam colocadas à venda.

Parece uma casinha de bonecas, tão bem cuidada, jardim delicadamente tratado com muros feitos de arbustos aparados ao milímetro. Pertinho da fundição, a paredes meias com o terreno que circunda a casa que foi do patrão. “Era uma excelente pessoa, muito amigo dos pobres”, recorda.

À primeira hora da manhã, encontrava-o na empresa para comandar o barco. Henriqueta atendia chamadas de todo o lado no seu primeiro e único emprego. Repetia vezes sem conta “Alba 6” — o número de telefone atribuído à empresa, ainda apenas com um dígito. “Era um corrupio, chamadas de todo o país e até do estrangeiro, até da Guiné vieram cá uns senhores”, lembra. Teve de aprender a pronunciar nomes esquisitos de empresas internacionais, a anotar todos os recados. “Conhecia toda a gente e não conhecia ninguém.” (...)


José de Almeida, electricista e desportista

O antigo electricista José de Almeida, de 82 anos, tem saudades da Alba. Entrou na empresa com 14 anos, saiu com 68. Os dias da fundição eram intensos e não havia mãos a medir. “Não davam vazão à louça de alumínio.” Lembra-se ainda da grande obra da barragem de Castelo de Bode. “A Alba fez uma torneira com 1,20 metros de diâmetro. Não havia nada que não se fizesse em ferro.”

José Almeida também ajudou para que a instalação eléctrica do cineteatro ficasse como deve ser. Foi ainda jogador e capitão do clube de futebol que a fundição criou e que montava arraiais no Campo das Laranjeiras, não muito longe da fábrica. A costela humanista da fundição alargava-se ao desporto, não para acumular vitórias, mas para promover o exercício físico e o convívio. “Tínhamos uma equipa a disputar o nacional só com futebolistas cá da terra”, recorda o ex-operário, ex-jogador, ex-capitão.

José Almeida lembra o companheiro João Castanheira, colega de campo, colega de trabalho, homem de mil ofícios, que morreu recentemente. “Era sapateiro, roupeiro, jogador, treinador, lavava a roupa, e era fundidor.” (...)


Pedro Martins Pereira, bisneto que continua a preservar a marca

Pedro passava as férias na fábrica do bisavô. Ganhava 25 tostões por dia e preferia passar o tempo na carpintaria. “Fazia coisas em madeira, um material mais humano do que o aço.” Mas, quando as suas mãos moldavam o ferro, nasciam coisas como um ovo metálico para apanhar camarões. Chegou também a recuperar um barco à vela. Além da postura do bisavô, da sua costela empresarial e veia altruísta, Pedro não esquece a aventura do avô Américo e do tio-avô Albérico que no final da II Guerra Mundial entraram de carro em Londres para comprar um navio que ia para a sucata. Fernando Pessa estava na BBC e entrevistou os dois aventureiros portugueses que meteram o carro no navio e voltaram a Portugal com toneladas de sucata pelo mar.

A relação afectiva não lhe permite fechar a Alba numa gaveta. Pedro cresceu ali, foi chefe de fundição e director técnico. Comprou a casa do bisavô bem perto da antiga fundição que um dia tenciona recuperar. “O meu bisavô era muito criativo, era um visionário.”

O relançamento da empresa está a ser trabalhado de forma contínua desde 2011. Pedro, engenheiro metalúrgico, é dono da Larus, empresa de mobiliário urbano. O know-how da Larus acaba por ser imprescindível na recuperação da Alba. “Um dos aspectos mais fortes, mais interessantes, mais consistentes da marca é que tem uma imagem sustentável que não se inventa. Ou existe ou não existe. E ela tem tanta energia, tem um grande potencial de se recuperar”, refere Pedro Martins Pereira.

Fonte: Sara Dias Oliveira (em Revista 2 do Jornal Público)(adaptado/extracto)

Fotos: Nelson Garrido

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