O Passado
O Bico do Monte denominava-se Pedra da Águia em 1117, ou seja, ao
tempo em que a Rainha D. Teresa concedeu a Carta do Couto de Osseloa,
para se instituir aqui uma Albergaria.
Esse notável
documento, de que proveio a fundação da nossa terra, fala-nos da Pedra
da Águia e os diversos autos da demarcação do aro do Couto confirmam, uniformemente, que o Bico do Monte é a antiga Pedra da Águia, a norte da
vila, e dela distante cerca de dois quilómetros.
É de crer que,
até 1855, o actual Monte do Socorro receberia, apenas, a visita de
raros pegureiros e dos gados que pasciam pelas encostas e que iam
tosando os matos que delas brotavam, espontâneos e bravios. Também o
sítio era propício às feras, que abundavam, como se infere do texto da
Carta do Couto de Osseloa.
Em 1855 grassou, no país inteiro, e com grande intensidade, a temerosa epidemia do cólera morbus,
deixando um rasto de desolação e morte. Esta vila foi gravemente
atingida, também, por essa peste, apossando-se o terror de todos, e indo
o desvairamento até à loucura. As famílias que podiam emigrar
abandonavam tudo, sendo algumas delas fulminadas durante esse êxodo
macabro.
Em tão aflitivo transe fizeram-se preces, encheram-se
os templos, e abandonaram-se todos os trabalhos e ocupações para se orar a Deus,
a implorar-lhe que extinguisse a epidemia.
Nos lugares de Assilhó, Sobreiro, S. Marcos e Frias
não houve caso algum do cólera, o mesmo sucedendo na freguesia de Vale Maior. Em
Albergaria houve 43 óbitos, e em Angeja as vítimas foram em número de 98.
Em Outubro desse ano de 1855 um grupo de homens fez o
voto de erigir uma capela no Bico do Monte, dedicada à Virgem, com a invocação
de Senhora do Socorro, se o terrível
flagelo nos desamparasse breve; – e verificou-se que, desde esse voto, nenhum
outro caso ocorreu, o que foi considerado como o primeiro milagre da Senhora do
Socorro.
Em 1856 deu-se começo à construção da capela, que foi concluída em
1857, celebrando-se então imponentes e luzidos festejos, a que se
associou uma considerável multidão.
Fundou-se uma confraria
própria, com estatutos, e cuja aprovação se requereu em 23 de Outubro de
1858, tendo a assinatura dos seguintes fundadores:
Padre João Fortunato José de Almeida; Padre João António José de
Almeida; José Marques Pires; Manuel Luiz Ferreira; Bernardino Marques
Vidal; Bento Alvares Ferreira; João Marques Pires; Patrício Luiz
Ferreira Tavares Pereira e Silva; João Ferreira da Silva Paulo; José
Marques de Lemos; António José Rodrigues; Joaquim Lourenço Mendes dos
Santos; Francisco Joaquim da Cruz; José Domingues da Silva; Manuel
Inácio da Silva; Joaquim Rodrigues da silva e Manuel José de Bastos. Os
dois últimos assinaram de cruz.
No § 1º do art.º 3º desses Estatutos determinava-se que a festividade
se realizasse no 4º Domingo de Agosto, mas, por dificuldades várias,
fixou-se depois o 1º Domingo posterior a 15 de Agosto e, finalmente,
estabeleceu-se o 3º Domingo desse mês, dia em que se celebra a festa
desde a nossa mais remota lembrança.
O Presente
Ergueu-se a capela e fez-se a sua inauguração com o entusiasmo
nascido da fé intensa dos que viveram dias de tamanha amargura e anseio,
crentes no milagre da Virgem. Havia que prosseguir nas manifestações em
honra da Senhora do Socorro, a cuja intercessão recorriam, de ora
avante, todos os que vivessem horas aflitivas, para que a sua dor se
debelasse.
Nos anos seguintes, e em número sempre crescente, os devotos acudiam
em romagem de piedoso agradecimento pelas mercês recebidas e trazendo as
dádivas em cumprimento de promessas.
Começou, então, a
conhecer-se o Bico do Monte, ficando-se surpreso com o vastíssimo e
variado panorama que dali se desfrutava, fosse qual fosse a direcção
para onde se alongasse a vista.
Ao poente os minúsculos montes
de sal de Aveiro, com a brancura da pureza das almas recolhidas em
silêncio, – o Farol da Barra, – as águas do mar, brilhando ao dardejar
do sol, estendiam-se pelo horizonte sem limites, até nos darem a
sensação de que terminavam onde começava de erguer-se a cúpula do céu.
Os canais, a ria com os seus minúsculos barquitos, de velas brancas que o
vento inflava e as praias e povoações, parece que enviavam o sentir da
sua saudade, quando não era a inveja pela grandeza com que a Providência
nos dotou.
A sul, a dois quilómetros, notavam-se os contornos
da nossa vila e alguns dos seus edifícios e uma ou outra janela aberta,
donde se desprendia o sorriso duma mulher graciosa e quem sabe se o
adejar dum lenço em saudação correspondida…
Distante, destaca-se o Buçaco, o Caramulo, e mais a nascente as
serranias das Talhadas, as do Arestal e mais e mais até chegarmos às
planícies do norte, cobertas de pinheirais e eucaliptos em densas matas,
intercaladas de povoações caiadas de branco.
O panorama, extenso e variado, é dos mais belos, e tarde despertamos da muda contemplação em que nos extasiamos horas seguidas.
Queremos esquecer os longos anos em que o Bico do
Monte permaneceu quase em ponto morto. Tornava-se necessário um forte impulso
mantido em perseverança. Várias tentativas houve dignas de registo, mas que
amorteciam a breve trecho, embora ficasse alguma coisa no rescaldo.
Se a Senhora do Socorro falava aos crentes havia que
atraí-los, e depois viriam também os turistas, os admiradores de tanta beleza,
trazidos por essa lenta, mas eficaz, propaganda, exercida pelos que ali iam uma
vez, para repetiram a romagem vezes sucessivas.
O impulso veio e mantém-se.
Abriram-se várias ruas de acesso ao cimo do Monte, –
alargou-se o recinto da capela com custosas obras de ampliação e muralhas de
suporte, – construiu-se uma escadaria a pequena distância da capela; –
estendeu-se e alargou-se a Avenida destinada ao percurso da procissão, –
plantaram-se árvores a cobrir as encostas, etc.
As obras prosseguem no mesmo ritmo. Construiu-se há
pouco uma pérgula circular na retaguarda da capela; – preparou-se um parque
para estacionamento das centenas de veículos automóveis que ali afluem, e isso
obrigou a rasgar-se a montanha; – melhoraram-se as estradas que lá conduzem; –
fornece-se água abundante, distribuída em fontenários; – aformoseou-se o
recinto com um lago, e outras obras se projectam para maior realce, e para
comodidade dos romeiros ou dos turistas.
No corrente ano de 1957 a afluência à procissão, e
pela tarde, foi de vários milhares de pessoas, havendo carreiras contínuas de
camionetes, e não bastando o parque para acondicionamento dos veículos.
Eram centenas os anjos que se incorporaram e todos
conduzidos pelos pais, em cumprimentos de promessas, e o manto da Virgem estava
inteiramente coberto de notas, ali pregadas pelos peregrinos, vindos de longes
terras, como óbvio, também, para auxílio do engrandecimento do Monte do
Socorro.
Fonte: Texto integral de
António de Pinho no Centenário do Monte da Senhora do Socorro [1957]. Capítulo
VIII do livro “Albergaria-a-Velha e o seu Conselho – Subsídios para a sua
história, documentos e apontamentos – homens e factos”, 1957
Link: Diocese de Aveiro