domingo, 10 de fevereiro de 2019

100 anos da Monarquia do Norte (1919-2019) - Lembranças duma Campanha do Vouga

Oficiais do batalhão comandado pelo Autor deste texto (Belisário Pimenta)

Nos dias tristes e pesados deste último inverno (...) muitas vezes me surgia à memória um outro inverno mau em que sucessos graves da nossa vida política me levaram a suportar as suas inclemências. (...) as evocações iam para o Vouga (...) junto do qual exerci, modestamente e ignoradamente, funções militares em ocasião bem desagradável para a nossa história contemporânea. (...)

(...) o Caima, perpendicularmente, forma uma linha de defesa da crista que sobe de Albergaria para o norte e intercepta a estrada de Viseu a leste desta última vila. (...) embora o atravessem com mais pontes, parece ser a linha natural de separação entre as regiões que constituem as zonas de influência do objectivo principal Coimbra-Lisboa e do objectivo menor que é o Porto.

Por tudo isto, os primeiros actos foram o que foram: do norte, a intenção de chegar depressa ao Vouga; do sul, a resolução rápida de manter, dentro do possível mas custasse o que custasse, as passagens do rio.

Aspecto da Região do Vouga
Foi, de começo, uma defesa simples, quase elementar; a surpresa dos sucessos do Porto, dias antes, não dera tempo a preparação de resposta eficaz. E foi em Esgueira, no cruzamento das duas estradas que correm para o Vouga, que me estabeleci e assumi o comando das poucas forças de que, no momento, se dispunha.

Eram elas: uma companhia de Infantaria 24, saída do quartel de Aveiro que vigiava e defendia a estrada para Eixo; outra, constituída pelo pessoal do 3.º batalhão daquele regimento (o de Ovar) postou-se na de Angeja; e a de Infantaria 23 que tinha ido comigo, ficou como reserva em Esgueira; a bateria incompleta de artilharia, instalou-se num pinhal adiante desta povoação para bater as pontes a norte de Cacia.

Assim se passaram dois dias, em vigilância aturada, em pesquisa dos movimentos contrários e na expectativa desagradável de qualquer surpresa que se não pudesse evitar − até que, em 24 de Janeiro, ao mesmo tempo que se sabia que as forças contrárias se aproximavam de Albergaria e de Salreu, em colunas separadas, começaram a chegar reforços e, por consequência, a intensificar-se a defesa que tão precária era.

Casa de São João Loure que serviu de quartel general dos republicanos

Uma destas forças chegadas foi para a margem direita do Vouga com missão de vigiar e inquietar a coluna monárquica que vinha na direcção de Albergaria; e outra força que possuía duas metralhadoras ligeiras, foi defender a ponte de São João de Loure.

As que já estavam, isto é, as duas companhias de infantaria 24 que eu comandava, foram para Cacia, uma para o apeadeiro e ponte do caminho de ferro; a outra para a estrada e ponte de Angeja; ambas com missão de defender estas passagens do rio e de manter vigilância contínua na margem esquerda desde o esteiro até Tabueira onde começava a vigilância da força da ponte de Loure. (...)

Em 26, já instalado, desde manhã, em Cacia, numa casa de pescadores ao cimo do lugar, tive conhecimento de que alguma cavalaria das forças revoltadas entrara em Angeja e uma companhia de 200 homens de infantaria estava a caminho desta vila; e na manhã seguinte, em que caiu pesado nevoeiro sobre o vale, sentiu-se na outra margem rodar uma coluna de artilharia. (...)

Oficiais que participaram nas operações do Vale do Vouga (IP)

Quase a seguir, surgiram as primeiras forças de infantaria do outro lado da ponte de madeira com intenção aparente de a transporem − mas o fogo da companhia que a guardava não deixou continuar o avanço e forçou aquelas a abrigarem-se convenientemente.

Começou, então, o tiroteio, que foi constante durante o dia entre as duas infantarias dum e outro lado da ponte, com mais intensidade de lá do que de cá, onde havia ordem de economizar munições; a artilharia contrária fez cerca de 40 tiros, espaçados, sem resultado além de uma ou outra árvore derrancada nos altos de Cacia. (...)

No dia seguinte, 28, a situação manteve-se quase na mesma; o fogo começou muito cedo, ainda de noite, com intensidade por vezes; a divisão de artilharia adversa que se via bem, no alto de Angeja, fez cerca de 30 tiros, vagarosos, mas mais certeiros do que na véspera: um deu na estrada, a 50 metros aquém da ponte de madeira; outro no encontro da ponte do caminho de ferro que ficou levemente danificada  (...)

Ponte de Angeja de madeira

A cheia do Vouga crescia a olhos vistos; os barcos (que, previdentemente, se tinham recolhido quase todos à margem esquerda, dias antes) teriam difícil manobra por a corrente ser impetuosa; a ponte de madeira era alvo bem visível e de fácil referência; e as tropas contrárias continuavam postadas na margem oposta, a pequena distância, e mais ou menos abrigadas.

Qualquer movimento feito de cá, teria que ser, pois, a descoberto − e por muito ardil que se empregasse sê-lo-ia com êxito?

O problema não era, por consequência, somente de ordem militar. E a chuva continuava, miúda, densa, com aspecto, por vezes, de nevoeiro cerrado; nada se via para pouco mais além da outra margem − e o ataque que se começou, nas alturas de Frossos, e de que se ouvia o tiroteio, continuava indeciso.
Alto de Angeja onde estiveram instalados os revoltosos

Mandei, contudo, tentar o conserto da ponte de madeira; mas mal o trabalho começou, veio uma granada rebentar sobre o ajuntamento com razoável pontaria. (...)

(...) fizeram-se dois reconhecimentos: um, constituído por pequenas forças de infantaria e de marinheiros, seguiu oculto pela linha férrea e, através dos esteiros, chegou às portas de Angeja; outro, formado por pequena patrulha de infantaria, atravessou o rio em barco, escondido pela ponte de madeira e conseguiu furtar-se às vistas das forças da margem direita até quase ao fim do chamado túnel de Angeja (...)

O combate, na margem direita, manteve-se indeciso, não conseguiu o objectivo determinado; a noite caía e o comandante do destacamento, conforme novo plano, mandou seguir para Loure uma das companhias (a que estava no apeadeiro de Cacia) e deu-me nova missão que eu fui receber na noite de 29 para 30, ao Quartel do comando em Loure, enquanto nas ruas e estradas caíam as maiores bátegas de água que é dado ouvir nestes climas considerados amenos.

Margem direita do Vouga - Pateira de Frossos

Recebi, nessa noite de 29 para 30 de Janeiro, a missão de, no dia seguinte, ainda com o lusco-fusco, fazer aparecer a leste de Frossos, na altura da estrada Loure-Albergaria, três companhias de infantaria: uma do regimento n.º 5, outra, mista, dos regimentos 28 e 35; e outra (que mantive em reserva) do regimento 24 que viera, de noite, de Cacia.

O aparecimento destas forças, ao romper da manhã, conjugado com o ataque de frente, feito pelas forças que, à minha esquerda, deveriam seguir na direcção sul-norte, ao longo da estrada S. João de Loure-Angeja, tinha o objectivo de simular o corte de comunicações com as forças monárquicas que operavam pelas alturas de Albergaria e o possível flanqueamento das posições de Angeja. (...)

À direita, para os lados de Albergaria, o outro destacamento ocupou novas posições à frente e avançava com segurança. O êxito do movimento acentuava-se e as deslocações iam-se fazendo − quando recebi ordem para retirar e reunir as minhas forças na povoação do Eirol, na margem esquerda do Vouga. (...)

Ponte da Rata, Eirol (concelho de Aveiro)

Desci a S. João de Loure, atravessei a ponte, cortei à esquerda pela E. N. n.º 45 e subi pela calçada estreita e em curvas para essa pitoresca povoação do Eirol, assente em terras altas que dominam o vale e a passagem sobre o Águeda que eu ia encarregado de defender. (...)

No dia seguinte, já os campos se alegravam com o sol quase às soltas no céu com poucas nuvens, recebi a comunicação de que a nossa cavalaria, ao explorar a margem direita, na direcção de Angeja, verificara a saída das tropas contrárias desta vila e a sua marcha normal para o norte, na direcção de Estarreja.

Estávamos, pois, de novo, senhores da margem direita; e na tarde desse dia 31 entrei com o meu batalhão em Angeja e tomei as posições de apoio a outro batalhão já nessa altura em postos avançados na linha Fermelã-Sobreiro (...)


Durante os nove dias que se seguiram, o batalhão fez o serviço de postos avançados, de apoio ou de reserva, consoante a escala, na região ao norte de Angeja; lançou reconhecimentos pelos quais se concluía que os adversários tinham muito pouca gente na povoação de Salreu e só em Estarreja tinham maior número.

Nestes nove dias, o comando superior das forças em operações esteve a organizar melhor os dois destacamentos que operavam ao longo das estradas Aveiro-Ovar e Águeda-Oliveira de Azeméis − e por isso se chamavam vulgarmente os destacamentos de Aveiro e de Albergaria.

Era já o caminho (como teria dito o ilustre comandante Rocha e Cunha) para o estado positivo.

Em 9 de Fevereiro, à noite, planeou-se o ataque a Salreu como base para atacar Estarreja que se julgava ser (como, de facto, foi) o último reduto da resistência adversa.

Exposição sobre "Monarquia do Norte" em Estarreja
O plano era simples: o 1.º batalhão do destacamento seguiria pela estrada Angeja-Estarreja; eu, apoiando a minha-esquerda na direita desta unidade, seguiria pela estrada Angeja-Albergaria até ao Sobreiro onde transporia a linha dos postos avançados para realizar a marcha na direcção norte, com o fim de ocupar a linha determinada pelos lugares de Soutelo-Campinos de Salreu e obrigação de estabelecer ligação constante à direita com o destacamento n.º 2 (Albergaria).

Realmente, na manhã de 10, nevoenta, com prenúncios de chuva, começou-se a marcha, algum tanto demorada por deficiências técnicas da sua preparação (...) pela tarde, cerca das 15 horas e meia, depois de várias peripécias sem importância para o conjunto, conseguiu-se alcançar o objectivo, e, até, na direita, ultrapassá-lo um pouco, por engano, nas alturas da povoação do Soutelo. (...)

A vila de Estarreja era, naquela zona, o último reduto da resistência; as forças adversas retiraram para o norte e a acção perdeu todo o interesse, porque a retirada era patente e a reviravolta no Porto, em 13 de Fevereiro, veio rematar a contenda. A 16 do mesmo mês, as forças reunidas entraram no Porto entre aclamações e músicas.

Fonte: Extractos de Artigo de Belisário Pimenta (1936) (em site "Arquivo do Distrito de Aveiro")

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